Entenda como uma Proposta de Emenda à Constituição pode desmontar o sistema financeiro e abalar a economia nacional

Tramita no Senado Federal, mais precisamente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023. A matéria, que transforma o Banco Central do Brasil, de autarquia pública, em uma instituição submetida ao direito privado, tem potencial para gerar repercussões profundas não apenas no próprio BC, mas em todo o Sistema Financeiro Nacional.
Além dos possíveis retrocessos já projetados da mudança do regime jurídico da Autoridade Monetária, há que se destacar os desequilíbrios institucionais produzidos pela matéria. Escanteados nesse debate que, no mundo ideal dos defensores da referida PEC, deveria ser ainda mais açodado, estão diversos atores, dentre eles investidores, entidades do mercado de capitais e, inclusive, instituições públicas como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), instituição essencial — conforme destacam os próprios regulados — para a “preservação da integridade, da transparência e da confiança no mercado de capitais nacional, regulando e supervisionando com rigor os diversos participantes, instrumentos e atividades que compõem esse sistema”. (Carta aberta de 31/07/2025 das entidades atuantes no mercado de capitais brasileiro).
A transformação do Banco Central em uma superestrutura, em detrimento das demais autarquias no Núcleo Financeiro do Estado (CVM, SUSEP e PREVIC), evidencia um certo desprezo às instituições públicas que atuam para além do sistema bancário. Considerando uma sociedade que defende a relevância da livre iniciativa e da participação do capital dos investidores no desenvolvimento da economia real, com impacto na vida dos seus cidadãos, esse tratamento assimétrico torna-se ainda mais injustificável.
Não bastasse a manutenção de pontos já considerados negativos no texto, o mais recente substitutivo do relator, senador Plínio Valério (PSDB/AM), à matéria trouxe o acatamento da emenda nº 17, apresentada pelo senador governista Rogério Carvalho (PT/SE), que coloca em risco o futuro do mercado de capitais no Brasil. Em vez de uma manobra para o esvaziamento do papel da Comissão de Valores Mobiliários, o que pode comprometer o arcabouço regulatório nacional, as instâncias decisórias deveriam concentrar esforços no atendimento a demandas históricas pendentes de resolução.
Em 2020, o Plenário do Tribunal de Contas da União aprovou o Acórdão nº 3252/2020, em que recomenda a indicação para a diretoria da CVM de servidores efetivos das superintendências finalísticas, segundo o princípio da impessoalidade (recomendação 9.3.2). O Poder Executivo Federal não vem cumprindo a recomendação do TCU. Desde 2020, houve a indicação de oito membros do Colegiado da CVM, sendo que somente um deles era servidor da Casa. E mesmo esse servidor foi indicado para um mandato tampão, com menos de um ano de duração. O último mandato completo de um membro do Colegiado oriundo dos quadros da CVM se encerrou em 2016.
Atualmente, o Colegiado da CVM encontra-se com duas cadeiras vazias, incluindo a de Presidente. No fim do ano, uma terceira cadeira ficará vaga.
No que se refere à capacidade institucional da Comissão de Valores Mobiliários para cumprir sua missão legal, o art. 7º da Lei n.º 6.385/1976 estabelece que as despesas necessárias ao funcionamento da CVM serão custeadas por receitas de taxas decorrentes do exercício de seu poder de polícia, nos termos da lei, além de dotações consignadas no orçamento federal, receitas provenientes da prestação de serviços pela CVM, observada a tabela aprovada pelo Conselho Monetário Nacional, e renda de bens patrimoniais e receitas eventuais.
A União tem esvaziado essa determinação legal. Apenas uma pequena parte das receitas provenientes de taxas cobradas do mercado de valores mobiliários é destinada ao custeio da CVM. A maioria desses recursos é redirecionada para outras finalidades no orçamento da União, em desfavor dos investidores e das entidades do mercado de capitais. No ano de 2024, a CVM arrecadou R$ 1,132 bilhão, mas seu orçamento foi limitado a R$ 233 milhões, sendo deste valor somente R$ 32 milhões em suas ações discricionárias para regular, fiscalizar e supervisionar o mercado de capitais. Ainda assim, a CVM já sofreu diversas vezes com contingenciamentos discricionários de seu orçamento.

Além das taxas, a CVM também aplica multas em processos administrativos sancionadores e arrecada valores decorrentes da celebração de termos de compromisso. Em 2024, foram arrecadados R$ 110 milhões com termos de compromisso e aplicadas multas que superaram R$ 1 bilhão.
Em relação aos instrumentos que a Autarquia possui para zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro, o art. 9º da Lei n.º 6.385/1976 prevê que, para prevenir ou corrigir situações anormais do mercado, a CVM poderá proibir aos participantes do mercado, sob pena de multa, a prática de atos prejudiciais ao seu funcionamento regular, além de suspender ou cancelar registros.
Segundo a exposição de motivos da Emenda nº 17 à PEC 65/2023, seria necessário conferir ao BC “instrumentos de intervenção para manter níveis adequados de liquidez e a funcionalidade dos mercados com a totalidade de entidades e fundos que atuem no mercado secundário de títulos”. Por trás dessa ideia está uma preocupação com situações similares às corridas bancárias no universo dos fundos de investimento. Em tese, diante de um volume anormal de pedidos de resgate de cotas, fundos de investimento podem ter problemas de liquidez e se ver obrigados a vender em série seus ativos para pagar o resgate da aplicação aos cotistas. Se isso ocorrer de maneira generalizada, há uma queda abrupta de preços e a liquidez do mercado financeiro é comprometida.
Por mais que essa proposta seja bem-intencionada, ela ignora as salvaguardas já existentes na esfera da CVM, que lidam com isso sem onerar o Tesouro Nacional ou incentivar a tomada de riscos excessivos pelos agentes do mercado financeiro diante da possibilidade de salvamento pelo orçamento público.
Primeiro, é preciso entender que esses problemas de liquidez acometem diretamente apenas os fundos abertos, em que os cotistas podem solicitar o resgate de sua aplicação, obrigando o fundo a liquidar parte de seus ativos para dar saída ao investidor. Tais problemas não ocorrem nos fundos de investimentos fechados, que não admitem resgate.
A CVM realiza um acompanhamento bastante próximo do gerenciamento de liquidez dos fundos abertos. Desde 2012, a regulamentação já incorpora aprendizados da crise de 2008.
As resoluções atribuem explicitamente aos prestadores de serviços dos fundos abertos a obrigação de gerenciar a sua liquidez (o que significa adotar medidas para garantir que os pedidos de resgate sejam atendidos com normalidade). O acompanhamento dessas obrigações é realizado de maneira bastante próxima e atenciosa pela CVM, por meio de supervisão e fiscalização conduzidas pela Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (SIN) e pela Superintendência de Securitização e Agronegócio (SSE).
Diante de situações anormais em algum fundo de investimento, a regulamentação dispõe de mecanismos para preservar o valor da aplicação dos investidores. O mais conhecido deles é o fechamento do fundo para resgate, que impede os cotistas de realizarem o resgate das cotas temporariamente, de modo a preservar o valor dos ativos do fundo.
De toda forma, a despeito das crises econômicas enfrentadas pelo país na última década, a indústria de fundos de investimento demonstrou resiliência e segurança incomparáveis. Não se tem notícia de ameaça de risco sistêmico atribuída aos fundos de investimento, ao contrário do que se discute atualmente sobre instituições sob supervisão do próprio Banco Central.
A indústria de fundos de investimento brasileira é reconhecida mundialmente por sua pujança, segurança e riqueza, sendo a 10ª maior indústria de fundos abertos em termos de patrimônio e a 3ª maior das Américas. Foi sob a supervisão da CVM, nas últimas duas décadas, que o setor alcançou esse patamar. A Emenda nº 17 ignora solenemente esse cenário ao determinar que um ente há muito tempo estranho ao mercado de fundos possa interferir em sua dinâmica cotidiana, ignorando não apenas as ferramentas da CVM para lidar inclusive com cenários de estresse, mas também os seus méritos por desenvolver a indústria de fundos de forma segura e eficiente.

Anteriormente, quando parte dos fundos de investimento estava sob a alçada do Banco Central e a outra sob a da CVM, a indústria era pouco expressiva, estava à sombra dos bancos e pouco contribuía para o desenvolvimento econômico do país. A regulamentação era fragmentada e a competência de cada regulador era ambígua para os participantes da indústria. Foi apenas com a consolidação da regulação dos fundos sob a CVM, nos anos 2000, que os fundos passaram a cumprir fielmente sua função econômica, gerando riqueza aos brasileiros, que se converte em emprego e bem-estar social. A Emenda nº 17 ignora esse histórico bem-sucedido, que serve de exemplo mundo afora, retornando parcialmente a um cenário institucional que já se provou disfuncional.
Por fim, ainda que se entenda pelo mérito de rediscutir a estrutura do Sistema Financeiro Nacional, a forma como a Emenda nº 17 busca lidar com esse tema é incorreta.
Em primeiro lugar, a proposta se limita a intervir em um assunto específico, dispensando uma necessária visão sistemática e profunda da estrutura do Sistema Financeiro Nacional. Trata-se de uma “colcha de retalhos” perigosa, uma vez que ignora todo o contexto que envolve os fundos de investimento e todas as demais entidades que detêm títulos públicos e privados que compõem o Sistema Financeiro Nacional (como as seguradoras e os fundos de pensão).
Em segundo lugar, a Emenda nº 17 não traz mecanismos institucionais adequados para lidar com a complexidade de se ter um regulador interferindo no perímetro regulatório de outro regulador do Sistema Financeiro Nacional. Não se discute, por exemplo, possíveis conflitos entre determinações do Banco Central e da CVM, jogando a indústria de fundos de investimento em uma insegurança que, no passado, quando existiu, travava o seu desenvolvimento.
Desse modo, ainda que se entenda pela conveniência de se discutir o mérito da Emenda nº 17, trata-se de um tema que não pode ser conduzido de forma açodada e tangencial ao objeto principal da PEC 65/2023, sem dar espaço e tempo para todas as entidades afetadas (aí incluída a própria indústria) debaterem e contribuírem com as tratativas no Congresso Nacional.
Vale destacar, ainda, aos parlamentares que estejam imbuídos do espírito público e compromissados com a independência do sistema financeiro, que considerem a imperativa necessidade de se corrigir todas as distorções e incluir as prerrogativas oferecidas ao Banco Central na PEC 65/2023 para a CVM, a SUSEP e a PREVIC, sob pena de um desmoronamento do sistema financeiro que tem sido um exemplo de estabilidade e sucesso para os demais países.
Fonte: https://iclnoticias.com.br/mercado-de-capitais-em-risco/

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