“Se queremos um mercado de capitais ainda mais desenvolvido, precisamos lutar pelo fortalecimento da autarquia e pelo reconhecimento de seu quadro de colaboradores”, escreve o sócio da XP
Para um país ser considerado desenvolvido é fundamental a existência de um mercado de capitais forte e confiável, com regras e esferas de controle que garantam o seu melhor funcionamento. No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) cumpre o papel fundamental de regular e fiscalizar todo o mercado, garantindo a segurança necessária para que investimentos sejam realizados nos diversos setores da economia, beneficiando toda a sociedade. Mas, prestes a completar 50 anos, a autarquia vem sofrendo com a falta de investimentos e passa, provavelmente, pelo período mais desafiador de sua história até aqui.
Além de desenvolver e fiscalizar o mercado de valores mobiliários do Brasil, o seu objetivo também é defender os interesses do investidor e garantir um ambiente seguro e transparente, no qual as empresas possam captar recursos para o financiamento de suas atividades. Ao longo dessas quase cinco décadas, a CVM exerceu papel fundamental para o desenvolvimento do país, acompanhando a evolução dos mercados globais e posicionando o mercado financeiro brasileiro como um dos mais maduros e respeitados do mundo.
Nos últimos anos, o papel da CVM foi ainda mais importante, dada velocidade das mudanças que estamos vivenciando. Experimentamos uma transformação financeira sem precedentes, com uma forte sofisticação do mercado de capitais, inúmeros novos instrumentos lançados, bancos digitais e plataformas surgindo e se consolidando, assessores de investimentos ganhando protagonismo, além de uma indústria de assets que vem ampliando sua atuação e, a cada ano, tendo mais conexão com a economia real.
Toda essa transformação tem um efeito multiplicador sem precedentes. O setor de infraestrutura (debêntures), por exemplo, possui hoje uma participação privada nos investimentos anuais em torno de 55%, chegando a picos de 64%, quando antes girava entre 5% e 10%. Esse movimento possibilita que os volumes alocados em infraestrutura sigam batendo recordes, enquanto o poder público pode focar esforços para desenvolver novos mercados ainda pouco explorados pelo mercado de capitais, como o de mineração focada em transição energética e o de crédito de carbono, entre outros.
O setor de saúde é outro que vem se beneficiando com o interesse do investimento privado. Entre alguns dos exemplos recentes está a Tellus, que levantou R$ 1,4 bilhão para investir em hospitais e clínicas pelo país; já a TRX está investindo mais de R$ 600 milhões em uma nova unidade do hospital Albert Eisntein; a HSI investiu no Hospital Vera Cruz, e espera chegar em R$ 1 bilhão de capital alocado no setor; e a Riza que está investindo R$ 600 milhões junto da Hapvida com o objetivo de levar saúde de qualidade para um número cada vez maior de pessoas, e num preço ainda mais acessível.
Apenas nesses casos acima, temos cerca de R$ 4 bilhões de investimentos no qual a CVM teve papel fundamental, pois foi graças a atuação da autarquia que as ofertas públicas desses Fundos de Investimentos Imobiliários (FIIs) foi possível, com seu corpo técnico analisando e viabilizando essas operações em toda a sua complexidade. E será via CVM também que irão passar as inúmeras emissões de CRIs e follow-Ons que estes fundos do exemplo em questão deverão demandar nos próximos anos.
Mas, apesar do crescimento e desenvolvimento do nosso mercado, os investimentos na CVM seguem no sentido oposto. A falta de quadro de funcionários na entidade é gritante – além de não ter acompanhado a evolução dos mercados na última década, ainda sofre com o processo natural de aposentadoria de alguns de seus principais membros.
Para realizar as suas funções, a CVM conta com “analistas” e “inspetores”, servidores de nível superior que atuam preponderantemente na regulação e fiscalização do mercado, e com “agentes executivos”, servidores de nível médio que dão suporte especializado ao trabalho dos demais.
Atualmente, a CVM tem 285 analistas ou inspetores ativos, uma redução de 23% em relação há 10 anos. Isso mesmo, o número de servidores de nível superior ativos segue reduzindo nominalmente, mesmo com todo o crescimento que observamos nos diversos setores. Em termos de orçamento discricionário não foi diferente. O orçamento da autarquia saiu de R$ 61 milhões em 2014 para R$ 32 milhões, em 2024, uma queda de 48%. Hoje, a entidade possui um orçamento de menos de R$ 3 milhões por mês para supervisionar e fazer evoluir uma das 10 maiores indústrias financeiras do mundo.
Apenas para efeito de comparação, segundo a Dealogic, as receitas envolvendo operações de mercado de capitais devem se aproximar de 4,3 bilhões. Ou seja, o orçamento anual da CVM equivale a cerca de 2 dias úteis das receitas do mercado de capitais. Em paralelo, nesse mesmo período, o volume de fundos mais do triplicou, se aproximando dos R$ 10 trilhões sob gestão, e o número de investidores na Bolsa aumentou exatas 10 vezes, para 5 milhões de CPFs únicos. Quando fazemos uma relação do tamanho do mercado como um todo pela quantidade de servidores ativos, esse número dispara de R$ 33 bilhões em 2014 para R$ 193 bilhões, em 2024 – crescimento de quase cinco vezes o volume por servidor.
Um dos efeitos colaterais de curto prazo para a CVM é uma dilatação dos prazos para análise das inúmeras consultas e pedidos de ofertas públicas, além de uma menor capacidade de observância sobre todos os entes regulados. No longo prazo, o efeito da falta de quadro de servidores é ainda mais nocivo, gerando uma dificuldade do regulador e suas normas acompanharem de maneira adequada a evolução do país e seu mercado de capitais.
Sabemos dos gargalos e dos desafios que o país possui em saúde, educação, segurança pública, dentre muitos outros. Todos, obviamente, necessitam de investimentos na casa dos bilhões de reais e de toda a nossa atenção enquanto participantes da sociedade. Mas o que pouca gente discute e que vale a nossa atenção e especial apoio nesse momento é como solucionar o gargalo de talvez menor complexidade e com um elevado poder multiplicador sobre quase todos os setores da economia: que é o fortalecimento da CVM e de seus servidores. Não fosse o seu corpo técnico altamente qualificado e comprometido, estaríamos em uma situação ainda mais desafiadora.
Nesse sentido, duas medidas são fundamentais nesse momento: ampliar o quadro de pessoal de nível superior da CVM, condição sem a qual a autarquia não pode sequer pedir novos concursos para os cargos de analista e inspetor; e autorizar o concurso para os cargos vagos de agente executivo. Os pedidos de ambas as medidas já foram feitos pela CVM, mas não entraram na Proposta de Lei Orçamentária Anual de 2025.
Faço esse alerta para que todo o mercado apoie o contínuo desenvolvimento e crescimento dessa entidade fundamental. Se queremos um mercado de capitais ainda mais desenvolvido, se buscamos ainda mais investimentos em todos os setores da economia, precisamos lutar pelo fortalecimento da CVM e pelo reconhecimento de seu excelente quadro de colaboradores. É um chamado urgente para o desenvolvimento do Brasil, com impacto direto no futuro da nossa sociedade.
PS: No dia 23 de dezembro, a CVM publicou uma consulta pública sobre os FIPs, visando modernizar as regras e em especial flexibilizar tal instrumento para o público geral. Isso reforça dois pontos: enquanto inúmeros setores já estavam de recesso, a CVM não parou para cumprir com um importante item da sua agenda prioritária de 2024; e a nova norma de FIPs, quando oficializada, poderá trazer um impacto muito relevante para sociedade, conectando poupadores com grandes projetos de infra, agro, real estate, private equity, dentre outros.
Fonte: https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/o-paradoxo-da-cvm-e-o-mercado-de-capitais.ghtml