As Infraestruturas de Mercado Financeiro (IMF) representam um arranjo que, embora invisível para muitos, viabiliza o funcionamento do sistema financeiro nacional. O termo pode sugerir que se trata apenas de uma infraestrutura tecnológica, mas, na verdade trata-se de um mecanismo complexo que estabelece regras e procedimentos comuns, exige uma governança robusta e conta com mecanismos especializados de gestão de riscos, proporcionais às exposições assumidas pelo sistema e por seus participantes.
Em texto anterior desta coluna, apresentamos as definições e importância dos conceitos de mercado de bolsa, balcão organizado, serviços fiduciários e infraestrutura de mercado financeiro, no contexto da regulação da CVM e do mercado de capitais. Já no presente texto, discutiremos os tipos de sistemas autorizados pelo Banco Central do Brasil (BCB) e as IMF no contexto do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) [1].
Definições: IMF, SPB e mais ‘letrinhas para a sopa’
O BCB define IMF, em linha com os Principles for Financial Market Infrastructures (PFMI), documento publicado em conjunto pelo BIS e pela Iosco, como um sistema multilateral que reúne diferentes instituições participantes, incluindo o próprio operador. Sua função é viabilizar a compensação, a liquidação ou o registro de pagamentos, títulos e demais transações financeiras.
Por sua vez, o SPB é o conjunto de procedimentos, regras, operações e sistemas destinados a permitir a transferência de recursos e a liquidação de obrigações financeiras no Brasil. Disciplinado pela Lei nº 10.214/2001, o SPB modernizou a movimentação financeira no país, substituindo um modelo de liquidação diferida pela Liquidação Bruta em Tempo Real (LBTR), viabilizada pelo Sistema de Transferência de Reservas (STR), operado pelo próprio BCB.
O STR é a base de liquidação final de todas as operações interbancárias no Brasil. Já o Pix é um arranjo de pagamento instantâneo para transferências de varejo. O Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), também operado pelo BCB, é responsável por interligar as instituições participantes do Pix. As posições líquidas das instituições no SPI são refletidas e liquidadas em suas contas de reservas no STR, assegurando que, no final, o dinheiro realmente saia da conta de reservas de um banco e entre na de outro.
A ideia de “ter dinheiro no banco” é, na prática, uma abstração. O saldo que aparece no aplicativo ou no extrato não corresponde a um montante físico de cédulas guardado em um cofre com o nome do cliente. O que existe é um registro contábil digital, uma promessa da instituição financeira de que aquele valor está disponível para saque ou movimentação.
Interpretar o saldo bancário como uma promessa fundada em um registro contábil evidencia a relevância da infraestrutura tecnológica que sustenta as operações. A confiança em um banco não depende apenas de sua solidez patrimonial ou de sua liquidez imediata. Cada vez mais, ela está vinculada à resiliência, à segurança e à integridade de seus sistemas de core banking. É nesse núcleo tecnológico que funcionam os “livros digitais” das instituições: onde contas são mantidas, transações registradas e o funcionamento diário do sistema financeiro se viabiliza. Por essa razão, podemos considerar que as IMF são o pilar da arquitetura da confiança no sistema financeiro.
As IMF são compostas pelas Instituições Operadoras de Sistemas do Mercado Financeiro (IOSMF), as empresas que administram os sistemas, e pelos próprios Sistemas do Mercado Financeiro (SMF). Os SMFs são as estruturas operacionais e regulamentares que executam as atividades de liquidação de transações, depósito centralizado de ativos e registro de ativos financeiros.
Para os fins do presente texto, nos limitaremos à descrição dos Sistemas de Mercado Financeiro, seus tipos e funções.
Os diferentes Sistemas de Mercado Financeiro
Os SMF são classificados em cinco categorias principais, de acordo com a atividade que exercem.
Os Sistemas de Pagamentos – Payment Systems (PS) – são infraestruturas projetadas para processar e liquidar transferências eletrônicas de fundos entre contas de diferentes instituições. Eles são o mecanismo pelo qual o dinheiro “viaja” de um ponto a outro do sistema financeiro. Esta categoria inclui tanto sistemas de varejo, que processam um grande volume de transações de baixo valor, quanto sistemas de grandes valores – Large-Value Payment Systems (LVPS) –, que são a espinha dorsal da liquidez do sistema financeiro e, geralmente, operados pelos bancos centrais.
Um Sistema de Liquidação de Ativos – Securities Settlement System (SSS) – é a infraestrutura responsável por finalizar as transações com ativos financeiros – ações, títulos públicos ou derivativos. Sua função central é assegurar o princípio do Delivery versus Payment (DvP), a chamada “entrega contra pagamento”. Em termos práticos, isso significa que a transferência da propriedade do ativo do vendedor para o comprador só acontece se, e somente se, o pagamento for realizado na outra ponta. Essa mecânica elimina o risco de uma das partes cumprir sua obrigação e não receber a contrapartida.
Por exemplo, quando um investidor compra um lote de ações na B3, a negociação é registrada de imediato, mas a liquidação só ocorre dois dias úteis depois (D+2). O SSS da B3 coordena, de forma eletrônica, duas transferências simultâneas: as ações saem da conta de custódia do vendedor e vão para a do comprador, enquanto os recursos financeiros percorrem o caminho inverso, via STR.
No caso dos títulos públicos federais, o papel é desempenhado pelo Selic, operado pelo Banco Central. Ali se liquidam tanto as operações de compra e venda desses papéis como também as operações de mercado aberto do próprio BCB.
Uma Contraparte Central – Central Counterparty (CCP) – é a entidade que se coloca entre as duas pontas de uma transação, tornando-se o comprador de todo vendedor e o vendedor de todo comprador. Com isso, ela assume o risco de crédito de contraparte – o risco de que uma das partes não honre suas obrigações. A função da CCP é garantir que a liquidação ocorra mesmo se houver inadimplência de um participante. Para isso, utiliza um sistema sofisticado de salvaguardas, que inclui depósitos de margem e um fundo de garantia mutualizado.
Por exemplo, imagine que o investidor A venda um contrato futuro de dólar para o investidor B na B3. Assim que o negócio é fechado, a B3, atuando como CCP, quebra o vínculo direto entre A e B. A partir dali, A passa a ter a obrigação de entregar o contrato à B3, enquanto B adquire o direito de recebê-lo da B3. Se B quebrar antes da liquidação, A não fica exposto: sua contraparte agora é a própria B3, que possui capacidade financeira robusta e mecanismos de gerenciamento de risco preparados para esse tipo de situação.
Um Depositário Central de Ativos – Central Securities Depository (CSD) – é a entidade encarregada da guarda e da manutenção dos registros de titularidade de valores mobiliários em forma escritural. Em vez de papéis físicos, tudo se dá em registros eletrônicos. O CSD mantém contas individualizadas em nome dos investidores e processa tanto as transferências de propriedade quanto os eventos corporativos, como o pagamento de dividendos de ações ou de juros de títulos de dívida.
Já um Sistema de Registro de Ativos – Trade Repository (TR) – cumpre um papel distinto, ainda que complementar. Sua função principal é armazenar informações detalhadas sobre ativos financeiros e sobre as transações a eles relacionadas, incluindo a constituição de garantias. O registro confere publicidade, autenticidade e, sobretudo, unicidade ao ativo, funcionando como um verdadeiro “cartório digital”. Diferente do depósito, o registro não envolve a guarda ou a transferência da titularidade em si, mas cria uma base centralizada e confiável de informações sobre aquele ativo.
No Brasil, a aplicação mais relevante dessa infraestrutura está no mercado de recebíveis. Quando uma loja realiza uma venda a prazo no cartão, a transação é registrada em um TR, como Cerc, Nuclea ou TAG. Esse registro gera um ativo digital único que a loja pode usar como garantia em operações de crédito. Antes de emprestar, o banco consulta o sistema para verificar se o recebível realmente existe, se pertence àquela loja e se já não foi dado em garantia em outra operação. Esse mecanismo reduz drasticamente o risco de fraude e amplia a confiança no financiamento desse tipo de ativo.
A intervenção regulatória do BCB nos mercados de recebíveis e duplicatas escriturais transcende a mera supervisão, podendo ser caracterizada como uma ação deliberada de criação de mercado. Ao impor a padronização e o registro centralizado, o BCB transformou ativos que eram ilíquidos, opacos e de maior risco (percebido) em colaterais de alta qualidade, com características de unicidade, transparência e segurança jurídica. Esse processo “destravou” um enorme potencial de crédito para a economia real, beneficiando principalmente empresas de menor porte que dependem desses fluxos de caixa para financiar suas operações.
Além da tecnologia
A jornada desde a reestruturação do SPB em 2001, passando pela inclusão das instituições de pagamento em 2013, até a recente digitalização e criação de mercados para ativos de crédito como recebíveis e duplicatas, demonstra uma visão regulatória proativa e adaptativa.
O Projeto de Lei nº 2.926/2023, atualmente em tramitação, é um marco para consolidar e modernizar o arcabouço legal das IMF. A proposta busca alinhar de forma mais explícita a legislação brasileira aos PFMI, reforçando a segurança jurídica. Também procura traçar com mais clareza as competências de BCB e CVM, sobretudo nas zonas de interseção entre ativos financeiros e valores mobiliários.
Ao mesmo tempo, a tokenização é considerada uma nova fronteira, tomando como base a infraestrutura já consolidada de CSDs e TRs, que garante a unicidade e o controle sobre ativos escriturais, juntamente com padronização de dados promovida pelo Catálogo de Ativos Financeiros (CAF).
A crescente digitalização do sistema financeiro traz ganhos, mas também novos riscos. O risco cibernético tornou-se uma das maiores preocupações para a estabilidade global e nacional. O BCB já concentra sua supervisão em mapear e mitigar essas vulnerabilidades, exigindo de instituições e IMF planos robustos de resiliência operacional e segurança.
A arquitetura da confiança do Sistema Financeiro Nacional combina, de um lado, a solidez dos sistemas de liquidação operados pelo próprio BCB; de outro, a competição e a inovação trazidas por operadores privados. Esse arranjo tem mostrado eficácia em preservar a estabilidade e, ao mesmo tempo, acelerar a modernização. A evolução contínua desse ecossistema, guiada por regulação técnica, atenta e aberta à inovação, será determinante para manter a resiliência e a competitividade da economia brasileira em um ambiente financeiro global cada vez mais dinâmico.

Tudo Sobre FIDCs
O seu portal de notícias e análises sobre o mercado de FIDCs. Reunimos, diariamente, as principais informações sobre Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, mercado de capitais e crédito.
Acompanhe as movimentações, tendências e estratégias que moldam o universo dos FIDCs.
Tudo Sobre FIDCs: conteúdo inteligente para quem acompanha o mercado de FIDCs.