Quando vemos episódios complexos se desdobrarem no mercado, potencialmente prejudicando investidores, lembramos dos fundamentos regulatórios; cada participante tem seu papel, e isso precisa ser observado
Pode até parecer que o regulador cria diversos personagens no mercado de capitais e que tudo é muito complicado.
Mas, quando vemos episódios complexos se desdobrarem no mercado, potencialmente prejudicando investidores, lembramos dos fundamentos regulatórios — e por que não é à toa que tudo parece “muito complicado”. Cada participante tem seu papel, e isso precisa ser observado.
Trato aqui do caso recente, amplamente discutido no mercado, de que uma securitizadora teria investido recursos de “fundos de reserva” de alguns CRIs em outros CRIs, o que seria indevido e abalado a credibilidade desta e diversos efeitos em cadeia.
O fato veio a tona após uma debandada de diretores da empresa, acompanhado de denúncias na CVM e desconforto no mercado financeiro em geral, com temor de impactos para o setor de securitização (especialmente CRIs).
Tento explicar de maneira simples do que se trata esse “fundo de reserva”. Primeiro ponto: um CRI, ou “Certificado de Recebível Imobiliário”, é um título emitido pela securitizadora.
E como isso funciona?
O papel da securitizadora é transformar um título de crédito — por exemplo, um contrato de aluguel, em que um proprietário tem a receber um fluxo de pagamentos de inquilinos — em um investimento viável, acessível a diversos investidores. Imagine como seria complicado ter de receber diretamente de um inquilino os aluguéis de um imóvel que nem é seu. Concorda que não haveria como estruturar esse tipo de negócio em escala?
A securitizadora faz justamente isso: pega o contrato de aluguel como “recebível” e, com base no fluxo financeiro estabelecido, emite um título de sua própria emissão, o CRI, que você compra. O contrato fica como lastro, e a securitizadora tem a obrigação de honrar o que consta no termo de securitização, que conecta aquele fluxo de recebíveis ao investidor. A vantagem é que esse contrato pode ser fracionado, permitindo que vários investidores tenham acesso ao retorno. Além disso, a operação pode contar com garantias adicionais — e é aí que entra o “fundo de reserva”.
Esse fundo é constituído justamente para proteger o investidor em caso de falhas no pagamento, e costuma ser aplicado em ativos líquidos e conservadores, como fundos que compram títulos públicos ou CDBs de bancos de primeira linha. E obviamente ele tem um gestor que é obrigado a cumprir seu mandato.
Por isso, o papel da securitizadora é fundamental: ela deve atuar como árbitra, garantindo que o que foi prometido será cumprido.
Outro agente importante no processo é o estruturador, que monta a operação, encontra o fluxo de recebíveis, contrata a securitizadora, advogados e outros prestadores, e coloca a operação no mercado via distribuidores. Entre suas funções está pensar em como e por quem o fundo de reserva será gerido.
Há ainda o agente fiduciário, que deve agir com fidúcia, defendendo os interesses dos compradores do CRI. Ele verifica se contratos, garantias e informações estão sendo cumpridos.
A legislação do mercado de capitais é complexa, mas cada um tem seu papel nessa orquestra.
Não pode ser “tudo junto e misturado”
No Brasil, há uma visão liberal, com a qual concordo, de permitir que um mesmo grupo empresarial detenha diversas licenças reguladas pela CVM. Um empreendedor pode, em seu grupo, ter uma gestora, uma securitizadora, uma empresa de estruturação e até mesmo de distribuição. Nada de errado: os bancos atuam assim há décadas.
O ponto central é que conflito de interesse não se resolve proibindo, mas mitigando. Esse modelo traz eficiência e competição, mas também riscos.
E como se mitigam esses riscos?
As normas impõem basicamente:
- Segregação física, tecnológica e decisória das atividades;
- Nomeação de diretores estatutários distintos para cada atividade, e, de compliance para monitoramento;
- Ritos de governança formais, em que seria recomendável foruns adequados e registros em atas de suas deliberações;
- Regras de transparência e tratamento sobre conflitos;
- Punições em caso de falha.
A legislação cobre esses pontos, mas nem sempre é aplicada ao pé da letra. Investidores, por sua vez, muitas vezes ignoram os riscos estruturais e investem apenas pelo benefício fiscal ou pela rentabilidade prometida por estes títulos.
A atuação simultânea de empresas de um mesmo grupo em múltiplos papéis envolvidos nestas emissões aumenta a eficiência, mas também os riscos. O aprendizado vem caso a caso, com punições e aprimoramento regulatório.
No episódio recente, um ponto evidente — com base em informações públicas — é a concentração de poder em poucas mãos, com falhas na ingerência de diretores e organismos de compliance. Decisões que deveriam ser segregadas acabaram centralizadas, ampliando o conflito.
Se houve problemas também na atuação de terceiros, como agentes fiduciários ou gestores dos fundos de reserva, isso será investigado. Mas já parece claro que brechas regulatórias, dubiedades de interpretação e controles falhos permitiram uma alocação atípica de garantias.
O alerta ao investidor com esse caso é bem direto: focar apenas nos retornos e benefícios fiscais dos CRIs é um erro. É preciso entender os riscos da estrutura, a governança envolvida e, principalmente, a gestão por trás da operação. Muitos compram sem saber o que realmente estão adquirindo — ou confiam demais no distribuidor.
Não basta criar produtos sofisticados. Se a gestão falha, o risco se multiplica.
Securitizadoras, quando passam a atuar também como bancos de investimento (buscando empresas em uma ponta e investidores na outra) e ainda administram fundos de reserva, empilham riscos e aumentam conflitos. Quanto mais sobreposição de funções, maior a necessidade de controles rigorosos para preservar a independência das decisões.
Esse episódio pode levar investidores a olhar com mais desconfiança para securitizadoras. Seria uma pena, pois esse é um mecanismo fundamental para o desenvolvimento do mercado de capitais e uma importante alavanca de crescimento para o país.
Mas, confiança, quando perdida, custa caro para recuperar. Espero que não seja o caso.
Conflitos de interesse são inevitáveis, mas solúveis. Má gestão, não, só pode ser punida.
É justamente essa diferença que define se um mercado amadurece — ou se vira manchete negativa.

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